22 de dez. de 2021

Desmistificando o Fate e o FAE

Há alguns anos, quando eu ainda frequentava os eventos de RPG (maldita pandemia!), havia um assunto sobre o sistema Fate que gerava sempre muita controvérsia e confusão nas rodas de conversas. Em geral, muitos que gostam de Fate não gostam da sua versão Acelerada (o FAE) e isso acabava sempre no seguinte questionamento: Seria o FAE um jogo menos completo que o Fate?

 Para entendermos melhor este assunto, é interessante fazer primeiro uma contextualização. O coletivo Mundos Colidem tem em sua história um carinho todo especial com os jogos da linha Movido pelo Fate, em especial, aqueles que derivam do FAE. E um dos questionamentos constantes que recebemos é "por que vocês não fazem mais materiais voltados para o Fate?"

Em um período tão conturbado de autoverdades, é importante construir discernimento com fatos. Então nada melhor do que responder esta pergunta indo direto à sua principal fonte: Fred Hicks, co-criador do Fate. Em seu blog Deadly Fredly, ele desabafa (os trechos a seguir são livremente traduzidos do original em inglês):

"O que mais me frustra é quando as pessoas pensam que há algum tipo de linha divisória entre o Fate e o FAE, que o FAE é totalmente diferente do Fate, que se deve escolher entre o FAE ou o Fate, ou algo desse tipo. FAE é uma compilação do Fate. Não é um conjunto de regras diferente. É uma condensação, com duas ou três maneiras diferentes de apresentar certos conceitos."

Desta fala do Hicks, reforço a você, leitor, que elaborar material para FAE não é o mesmo que excluir o Fate, já que os dois são a mesma coisa. O mesmo sistema, o mesmo jogo. Qualquer regra extra, façanha, ficha de Personagem Não Jogador (PNJ) ou de Personagem Jogador (PJ) não são apenas intercambiáveis entre si, como funcionam sem praticamente nenhuma mudança de um para o outro.

Ficha, dados fudge e Pontos de Destino

É muito comum, também, ouvir que o Fate "é um sistema completo por seu livro de regras ser mais robusto e pela sua lista de perícias ser mais ampla." É necessário entender que o Fate se destaca como um sistema que funciona como uma caixa de ferramentas, lhe dando condições totais de recriar o jogo a seu gosto e necessidade. Por isso, Fred diz:

 "Você verá mais entusiastas do FAE porque, em sua natureza despojada, ele tem algo que permite a você ajustá-lo para uma configuração nova ou já existente e ainda ter um livro que não seja extremamente inchado (considere, em vez disso, começar com a linha base de 300 páginas do Fate, e então adicionar material para um cenário. Isto faria com que os livros tivessem mais de 500 páginas e levaria a afirmar que o Fate é um 'sistema mais completo' por causa da sua quantidade de páginas!)."
"O FAE também vai pegar mais entusiastas por causa de seu preço (você pode comprar livros suficientes para a sua mesa inteira pelo valor que normalmente pagaria por um manual do jogador em outros sistemas) e porque - francamente - apela para os preguiçosos e para os demais jovens/novos jogadores. Muitas pessoas não têm tempo de jogar e o FAE parece particularmente brilahnte para essas pessoas, eu mesmo incluído. Isto também significa que vai receber uma certa quantidade de paixão das pessoas que querem fazer uma one-shot em eventos com pouca ou nenhuma preparação."

Por isso, ao pegar o Fate e o FAE, o último parece tão estranho e diferente. O Fate possui exemplos e explicações mais aprofundadas das regras. O FAE não faz nada disso. Ele não perde tempo lhe explicando as regras em sua plenitude. Qualquer jogador novato pega o FAE, lê por alguns minutos e já está jogando como qualquer outro que tenha lido o Fate.

Já o Fate possui uma longa lista de perícias que pode, inclusive, aumentar, dependendo do cenário que você tenha utilizado para seu jogo. O FAE vai no caminho inverso. Coloca uma lista com 6 ou 7 abordagens (às vezes até menor) e consegue se desenvolver a partir daí. Alguns irão dizer que o funcionamento das abordagens difere das perícias. Sobre isso, Hicks explica que:

"Nós decidimos tentar 'dizer' algo um pouco diferente do que 'Sim, esta é uma lista de perícias, apenas mais curta' ao mudar a perspectiva do que as abordagens são, mas no final...elas são apenas perícias com outra cor."

Futuramente, posso trazer aqui para vocês algumas discussões de como você pode (re)utilizar as abordagens e não sentir nenhuma diferença para as perícias, mas me adianto um pouco e lhes apresento este interessante artigo da Fate Magazine do Filipi Dalmatti chamado Usando SEMPRE a mesma abordagem.

Livros da linha Fate

Um tempo atrás, fui abordado por um camarada que afirmava que não gostava do FAE por ele não possuir Extras. Bem, os Extras nada mais são do que uma façanha que cria uma regra especial para um personagem. Agindo como uma exceção, um efeito especial particular. Isso condiz com a particularidade do sistema em funcionar como uma caixa de ferramentas. Se você pegar o FAE, verá que as façanhas são apresentadas de uma forma um tanto quanto limitada, o que vai lhe passar a sensação errada de que lá as façanhas funcionam de forma diferente. Sobre isso, o Hicks fala:

"Façanhas são apresentadas (no FAE) do jeito que são para fornecer suporte e orientação extra para novoso jogadores, o que limita seu escopo, mas apenas um pouco, e de forma trivial, dadoq ue você pode aplicar a forma de pensar as façanhas do Fate no FAE e não quebrar nada."

Ou seja, da mesma forma como os extras são apresentadas no Fate, você pode utilizá-los no FAE sem praticamente nenhuma modificação. Além disso, o Fractal do Fate também funciona normalmente no FAE. E não é por este não citar a Regra de Bronze que ela não existe ou não pode ser aplicada.

Muitos dos novos jogos sendo lançados com o selo Movido pelo Fate têm misturado mecânicas e elementos tanto do Fate quanto do FAE, muitas vezes chegando a dar a impressão de que as editoras (ou os produtores de conteúdo) dão preferência ao FAE. War of ashes, por exemplo, é um livro extenso, com 368 páginas, que aplica as regras do FAE e as estende com extras de equipamentos e insere o combate com miniaturas. O Dresden Files Accelerated aplica a ideia dos Mantos, que funcionam como classes e raças para Fate. Já o Uprising usa um "mix" entre perícias e abordagens que ele chama de Meios (Means). O espetacular Evolution Pulse se apropria das abordagens para criar um conjunto de habilidades únicas para cada classe de personagem.

Por isso, volto a repetir, a grande pegada do Fate é funcionar como uma caixa de ferramentas para você criar o seu próprio jogo de RPG, com elementos únicos para o seu cenário. Não é à toa que é um dos sistemas mais versáteis e fáceis de se criar adaptações e cenários. O Worlds of Adventure, Conexão Fate e o Mundos Colidem são grandes exemplos desta capacidade. Inclusive, o nosso cenário totalmente original, o Nova Amsterdã, foi criado com base no FAE por simplificar as regras, mas adaptar para o Fate é uma atividade praticamente sem nenhum esforço.

Wil Wheaton, Felicia Day, John Rogers e Ryan Macklin jogam Fate - Tabletop
 

Então, finalmente respondendo à pergunta inicial, produzimos material para FAE por que assim podemos publicar pequenos documentos com todas as regras em um único lugar e podem ser utilizadas por novatos ou veteranos que queiram jogar imediatamente. Fazemos material em FAE, não porque não gostamos de Fate, mas por enxergarmos os dois como um único jogo. Quem quer utilizar o Fate só precisará pegar as regras extras e específicas do cenário, ao invés de adquirir um novo livro com mais de 300 páginas de regras.

É uma questão pura e simples de praticidade.

Encerro este artigo com uma afirmação de Hicks e importante para qualquer amante do sistema Fate: 

"Jogue o Fate e ignore o FAE, e vocÊ pode acabar tendo o trabalho de mexer no sistema sem perceber qual é o verdadeiro núcleo central do Fate. Jogue com o FAE e ignore o Fate e você estará perdendo uma série de dicas e perspectivas críticas, sem mencionar uma dúzia de ferramentas úteis para melhorar sua experiência de jogo. Eles são um continuum. Eles são o mesmo. Eles não são tão separados quanto as discussões sugerem. Você diminui ambos quando os trata como separados. Cada um melhora o outro."

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